Raily Yance e o poder do objeto cotidiano

Raily Yance, Las Canchas (As quadras), técnica mista sobre espuma de borracha, 2016. Cortesia do artista.
29 May 2024
Magazine América Latina Magazine
Words Sheila Ramirez
5 min de leitura
O artista venezuelano explica as mudanças culturais de Maracaibo através de objetos cotidianos.
C& América Latina: O isolamento que resulta de um estilo de vida predominantemente marítimo torna Maracaibo um lugar especial. Fale-me sobre esse local onde sua relação com os objetos e o cotidiano se iniciou.
Raily Yance: O conceito de relação tem muito a ver com Maracaibo. Eu me formei e me criei nesse Caribe de água doce. A relação com a água é tão grande que ainda existem regiões inteiras onde as habitações são construídas sobre a água (palafitas). É um lugar que mistura vários processos políticos, econômicos e sociais que foram se acumulando uns sobre os outros. O período industrial fui muito marcado pelo petróleo e pela presença estadunidense e europeia; iniciaram-se conflitos econômicos e uma nova transculturação. O que restou foram os objetos desses processos. O lago de Maracaibo está completamente contaminado, há muitos vazamentos de petróleo, águas sem controle; isso fez com que o ecossistema sofresse mutações demais. A contaminação é algo que testemunha esse desenvolvimento econômico e esse processo de industrialização.
Eu me lembro que, em volta do campo de petróleo, foram construídas casas para os estrangeiros e os engenheiros e havia todo um classismo. As pessoas que vinham de fora para trabalhar construíam suas próprias casas provisórias feitas de paus, chapas de zinco; uma produção feita com coisas que remetem ao imaginário da habitação indígena. De alguma forma, voltei a me envolver com a utilização do material que está a meu redor, a fazer coisas com o que se tem à mão.

Raily Yance, Entropías de los cotidianos (Everyday Entropy), ink on paper, 2023. Courtesy of the artist.
C&AL: Em sua série Entropías de los cotidianos (2022), você tira vários objetos de seus respectivos contextos, fazendo com que os mesmos provoquem uma reflexão sobre a criação e a função das coisas. Com que tipo de objetos você gosta de trabalhar?
RY: Os objetos com os quais gosto de trabalhar são objetos que sintetizam um contexto, uma cultura, um grupo. No desenho do chinelo/patim, posso estudar o Caribe e a Holanda ao mesmo tempo. Para mim, os objetos determinam o que somos e não somos. Traduzem sociedades inteiras. Uma pessoa que acorda de manhã, ou a qualquer hora, começa a ser uma pessoa através de um conjunto de ações, e todas ou quase todas as ações estão relacionadas a um objeto. As ações são culturais, o que nos diferencia é o modo como tomamos café, ou a forma como colocamos o sapato, como utilizamos os cabos de eletricidade ou a forma de nossa colher, de nossa faca.
C&AL: A mitologia caribenha e o uso do corpo aparecem em seu trabalho elevando o objeto cotidiano a algo que consegue canalizar ou transmutar energias. Que memórias trazem os objetos mágicos e o imaginário espiritual da região?
RY: A utilização da história da arte como referência em minha obra é uma intenção consciente que vem de um gosto pessoal, é algo que me desafia, mas que também me dá razão de viver. Além de representar sociedades inteiras, os objetos tem historicamente o poder de servir como amuletos, de transformar situações, de conter coisas. Quando pequeno, sempre via os altares da minha avó, a reivindicação do objeto mágico cotidiano na religião Vodu e na Santería da Venezuela. Eu me lembro que minha avó manipulava o clima com duas colheres. Ela era a causadora de tudo, com aquela oração a Santo Isidoro. Então, para mim, o talismã, a varinha mágica, a espada e o manto sagrado têm um impacto. Por exemplo, por viver no Caribe Holandês, há anos não vejo uma auyama (abóbora) colocada em uma esquina, sem explicação. Em Maracaibo, ela é muito utilizada contra as más energias. Sempre há uma avó com uma auyama na esquina da casa.
C&AL: A ação e o tempo coexistem em seu universo através dos objetos. Como ler e entender a cultura que nos rodeia?
RY: No ano 2000, fiz um exercício de entendimento cultural. Comecei a observar que toda vez que alguém criava um produto cultural e queria torná-lo universal no Ocidente, baseava-se na mitologia grega. Por exemplo, o mangá e o anime a utilizam para ter um mercado no ocidente e, consequentemente, uma projeção histórica. É uma ferramenta que, de alguma forma, manipula algoritmos sociais, convenções e costumes. Então, disse a mim mesmo: “Vou explorar minha imagem a partir de uma lógica de fusão entre a mitologia grega e as minhas tarefas cotidianas em minha casa, em Maracaibo, no Caribe”. As coisas que faço para subsistir e as coisas que faço porque minha mãe me pede, ou favores que tenho de fazer para o vizinho, em outras palavras, apliquei ali toda a minha lógica de comunidade a fim de brincar com essa forma de ver, do ponto de vista do espectador. Raily cargando la caja de cerveza é uma das minhas obras favoritas entre tudo o que já fiz em meus anos de trabalho. Em primeiro lugar, há uma satisfação. Em segundo, foi provavelmente a série que me deu algum tipo de sucesso financeiro.
Depois, o que me preenche mais é trabalhar com o meu corpo. Quando você entrega sua imagem a outra pessoa, isso envolve muita vulnerabilidade. Eu diria que a magia da pintura em óleo me ajudou com o conflito que eu tinha com a minha imagem, a imagem racializada em uma cultura hispânica, a imagem do suspeito, a economia, a estética.
Raily Stiven Yance é um artista plástico formado em Artes Plásticas pela Universidade de Zulia, Venezuela. O artista tem desenvolvido sua prática desde 2010, participando de vários projetos individuais e coletivos na Venezuela e em outros países.
Sheila Ramirez (2000, Santiago de Cuba) é designer e pesquisadora cubano-angolana. Explora, através de arquivos visuais e sonoros, a relação afetiva entre as pessoas e os objetos ao seu redor. Atualmente, está materializando sua pesquisa através do projeto The Archive Room.
Tradução: Renata Ribeiro da Silva



